O povo da cruz e a cruz de Cristo: atração e repulsão
Por
Leonardo Morais, Jr., OFA*
Há cerca de duas semanas o mundo
tomou conhecimento da execução de 21 jovens cristãos egípcios pelas mãos do
ISISI (Estado Islâmico do Iraque e Síria). O clima de indignação e repúdio
espalhou-se rapidamente por todos os continentes logo que a organização
terrorista divulgou o vídeo – produzido em alta qualidade – da decapitação de
cada um daqueles prisioneiros. Nas legendas do vídeo, podia-se ver, em língua
árabe, a “razão” ou o “motivo” de sua execução: “Povo da Cruz”. Isso me fez
lembrar das epígrafes que os soldados romanos, por sugestão dos judeus,
colocaram sobre a cabeça de Jesus, quando este estava dependurado na cruz:
“Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus”. A morte do Messias foi, por assim dizer,
identificada, ainda que jocosamente, com a sua missão e verdadeira identidade.
Entretanto, o que me chama à
atenção, entre outras coisas, nesse triste episódio dos 21 mártires egípcios, é
o modo como foram apresentados ao mundo pelos terroristas do ISIS: o “Povo da
Cruz”! Isso mesmo! É algo fascinante e
edificante à fé, mas que pode soar estranho a muitos cristãos ocidentais,
principalmente os evangélicos de linhagem pentecostal ou neo-pentecostal,
herdeiros da tradição anabatista, a qual desde seu surgimento, tem se insurgido
contra os símbolos cristãos tradicionais e adotado uma postura iconoclasta
muito firme. Outra razão porque boa parte das igrejas e denominações desse
segmento desprezam esses símbolos remonta aos idos do Brasil Império (meados e
fim do século 19), quando aos cristãos evangélicos, já em plena atividade e
expansão missionária em nosso território, não podiam construir templos ou usar
símbolos que caracterizassem o “novo culto” como igreja. Nessa época a Igreja
Romana era religião oficial, então nenhuma outra igreja podia se assemelhar a
ela externamente. O resultado dessa proibição, somado ao espírito anti-católico
dos missionários norte-americanos oriundos do sul dos Estados Unidos, foi o
estabelecimento e o cultivo de uma mentalidade preconceituosa e iconoclasta
para com tudo que aparentasse ser “católico-romano”. Assim as vestes
litúrgicas, os vitrais, os ícones, o uso da cruz e a persignação, entre outras
marcas históricas do culto e da piedade cristãs foram suprimidos da prática
evangélica que se impôs pelo Brasil afora.
Todavia, enquanto que a crucifobia
se instalou no inconsciente coletivo de alguns segmentos do cristianismo
evangélico, para os demais ramos do cristianismo histórico, a cruz tem sido por
dois milênios o símbolo ou emblema por
excelência de sua fé. Por outro lado, infelizmente, em diversas igrejas e
comunidades cristãs modernas insígnia da cruz tem sido desprezada e até
substituída por símbolos de fé completamente alheios ao cristianismo. É
possível, em muitas dessas igrejas e comunidades serem encontrados menorás
(candelabros judaicos), estrelas de David nas paredes e tetos, bandeiras de
Israel e da cidade de Jerusalém, líderes e leigos usando vestes e adereços
judaicos, tocando shofar e tentando reproduzir cenas e festas típicas do
judaísmo. Por vezes, diante desse quadro, ficamos na dúvida se, na realidade
estamos ou não em uma igreja cristã genuína.
Ao serem questionados acerca do
não-uso da cruz – e de outros símbolos tipicamente cristãos – alguns líderes e
leigos dessas comunidades apresentam, quase sempre, dois tipos comuns de
respostas: 1) “a cruz é símbolo de maldição” e 2) “não usamos pois é associação
com a Igreja Católica Romana. 3) “o uso da cruz é uma prática supersticiosa”.
Bem, em resposta poderíamos fazer
as seguintes considerações:
Em primeiro lugar, a cruz, embora
tenha sido o instrumento de tortura e morte de Nosso Senhor, ganhou um novo
significado à luz da obra redentora de Cristo. Foi na cruz que Cristo cumpriu
os desígnios salvíficos de Deus. Ademais, não é possível encontrar, nas
Escrituras, qualquer passagem que diga que a cruz (ou o “madeiro”) seja maldita.
Na realidade, a bíblia declara o seguinte: “está escrito: Maldito todo aquele
que for pendurado em madeiro”. Ou seja, quem está no madeiro é que é maldito, e
não o madeiro em si. São Paulo nos diz que Jesus Cristo a si mesmo se fez
maldição em nosso lugar! Sofreu todo o sofrimento que era nosso e recebeu em si
toda a condenação que era nossa e desde então simboliza nossa completa
absolvição das penas da Lei, é o maior símbolo da redenção dos eleitos de Deus.
Em segundo lugar, o uso do símbolo
da cruz é tão antigo quanto a formação das primeiras comunidades cristãs. Alguns
Pais da Igreja, como Tertuliano de Cartago e Hipólito de Roma, já nos séculos
II e III respectivamente, já faziam menção à persignação (fazer o sinal da cruz
sobre si mesmo), como práticas dos cristãos primitivos em forma de
auto-identificação com a paixão do Senhor. Também, São Clemente de Alexandria,
um representante da igreja oriental, no século III, chamava a letra T (tau),
símbolo da cruz, de “figura do sinal do Senhor” (Stromateis, VI 11). Dessa
forma, fica bem evidente que o símbolo da cruz era universalmente reconhecido
pelos cristãos primitivos.
Em terceiro lugar, um símbolo não é
a coisa em si mesmo, mas nos “lança” ou remete àquilo que ela simboliza. Ou
seja, no caso da cruz, não devemos tê-la como se fosse a realidade significada,
ou seja, como se fosse o próprio Senhor morto encerrado num objeto. É bem
verdade que há distorções e abusos no uso do símbolo da cruz. Há quem venere e
cultue o objeto em si. Há quem lhe atribua poderes e virtudes miraculosas. Práticas
semelhantes, como uso supersticioso e banal de óleos ungidos, de amuletos
judaicos, de palavras-passes (p.e., “paz do Senhor”), palavras de ordem ou
jargões característicos (“tá amarrado”, “eu decreto”, “o sangue de Jesus tem
poder”, etc.) também são bastante difundidas em algumas igrejas cristãs, porém
igualmente condenáveis, e nada disso está de acordo com a fé cristã
biblicamente fundamentada, que nos traz à memória, constantemente, as palavras
de Jesus: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto.” (Mt
4:10).
*Leonardo Morais, Jr., é frade da Ordem Franciscana
Anglicana – OFA é responsável pelo Ponto Missionário Anglicano de Sto. Estevão
Mártir, situado no Bairro São Miguel, Francisco Beltrão - PR.
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