quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Ano Litúrgico



Diferente dos calendários cívicos, que celebram e comemoram obras humanas, o Ano Cristão (AC) ou Calendário Litúrgico (CL) celebra o que Deus fez em Cristo, o que continua a fazer hoje, mediante o Espírito Santo, e o que Ele promete fazer no futuro.  Assim, o calendário da Igreja vem nos lembrar, continua e sistematicamente, durante tempo cronológico de um ano, dos feitos redentivos de Deus na história, cujo centro é o kairós - o "tempo oportuno" - identificado na Encarnação do Filho e no Mistério Pascal. No esquema deste calendário, Cristo está no seu devido lugar: no centro da história! Reforça, também, a confiança da Igreja na realidade de que a salvação não vem de nós, e sim da graça de Deus em Cristo Jesus. O AC nos lembra ainda da tensão entre o e do ainda não que marcam a misteriosa epifania do Reino: este está presente, mas ainda virá!  Daí entendemos que o resgate ou mesmo a descoberta do AC - junto com seu uso - abundante em teologia e espiritualidade cristãs, urge com forte apelo, em nossos dias, sobre contexto de boa parte do segmento protestante histórico brasileiro e quase que inteiramente sobre seu ramo evangelical, mais jovem, cujas essência e forma parecem-nos nitidamente mutiladas e esvaziadas de significado e de sentido. De certa forma, poderíamos falar até de uma completa dessacralização da vida, da doutrina e do liturgia em diversas denominações e "comunidades" evangélicas. Não há mais rito nem símbolos, não há mais lugar para a contemplação do mistério, perdeu-se a consciência do divino e a religião cristã agora parece-se mais com uma filosofia hedonista de auto-ajuda: antropocentrista em sua orientação, triunfalista quanto ao seu desígnio e esnobe em relação ao passado.

Visando, então, colaborar com os que buscam retornar a tudo o que era, que é e que sempre será comum à fé cristã histórica - o Projeto Litourgos apresenta, a seguir, a primeira parte de um importantíssimo texto sobre o Ano Cristão ou Calendário Litúrgico, de autoria do Rev. Carlos Alberto Chaves Fernandes. Esperamos que nossos leitores, especialmente clérigos (presbíteros, diáconos), seminaristas, ministros leigos, liturgistas e professores de escola dominical possam aproveitar bem este magnífico estudo sobre Calendário Litúrgico Cristão.

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 O Tempo Cristão: O Calendário Litúrgico - Parte I

Rev. Carlos Alberto Chaves Fernandes*


Para que seja plenamente entendido o significado do Calendário Cristão torna-se fundamental entender o sentido que existe no conceito de “tempo” para qualquer pessoa. O Rev. Prof. James F. White nos ajuda a entender o sentido do tempo para todos nós, ao afirmar:

A maneira como usamos o nosso tempo é uma boa indicação do que consideramos de importância primordial na vida. Sempre poderemos ter certeza de encontrar tempo para aquelas coisas que consideramos mais importantes, embora nem sempre admitamos perante os outros ou perante nós mesmos quais são as nossas prioridades reais. (…) O Tempo fala. Quando o damos a outros, na verdade estamos dando a nós mesmos. Nosso uso do tempo não só mostra o que é importante para nós, mas também indica quem ou o que é mais significativo para a nossa vida. O tempo, então, expõe escancarada e involuntariamente as nossas prioridades. Ele revela o que mais valorizamos pela forma como alocamos esse recurso limitado. (WHITE, J.S. – Introdução ao Culto Cristão – ed. Sinodal, 1997, pg. 38)

Para os cristãos não é diferente. Os cristãos levam o tempo a sério. Pois eles sabem que a história é o lugar da revelação divina. Deus se mostra e se desvela no tempo. O Deus dos cristãos se mostra por meio de eventos históricos. Tempo e lugar são fundamentais na fé bíblica, pois os crentes conhecem a Deus por meios de atos concretos, localizados em um determinado espaço e marcado em um tempo determinado também. Por isso diz Paulo: Na plenitude do tempo, Deus enviou o Seu Filho, nascido de mulher e nascido sob a lei (Gl 4.4). Certamente baseado no que disse o próprio Jesus, quando afirmou: O tempo se cumpriu, o Reino de Deus está próximo (Mc 1.15).

Os cristãos iniciaram a organização do seu calandário pelo modo como organizaram, primeiramente, a sua semana. No primeiro dia da semana Deus iniciou a criação fazendo a distinção entre a luz e as trevas (cf. Gn.13-5). Os quatro evangelistas são unânimes em afirmar que na manha do primeiro dia o túmulo foi encontrado vazio. Eis a nova criação, com Jesus Cristo ressuscitado dentre os mortos, vence as traves com a luz da sua ressurreição. Por isso, neste dia, desde os tempos antigos dos Atos dos Apóstolos, os cristãos se reuniam, não mais no sábado, mas no domingo (que, aliás, ganha este nome por causa de Jesus sua ressurreição: Dia do Senhor).

Testemunham este fato, ou seja, de que o dia da reunião dos cristãos para o Culto do Senhor era o primeiro dia da semana, quando Deus, na criação venceu as trevas e quando Jesus Cristo venceu a morte as seguintes afirmativas neotestamentárias: 
No primeiro dia da semana [domingo], estando nós reunidos com o fim de partir o pão [eucaristia], Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exortava-os e prolongou o discurso [sermão] até meia-noite. (At. 20.7)
No primeiro dia da semana [domingo], cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e vá juntando [a coleta]. (I Co. 16.2)
Achei-me em espírito, no dia do Senhor [domingo], e ouvi por trás de mim uma grande voz, dizendo: (…) (Apc. 1.10)
No findar do sábado, ao entrar o primeiro dia da semana [domingo], Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro. (…) E eis que Jesus veio ao encontro delas e disse: Salve! E elas, aproximando-se, abraçaram-lhe os pés e O adoraram. (Mt.28.1,9)
Havendo Ele ressuscitado de manhã cedo no primeiro dia da semana [domingo], apareceu primeiro a Maria Madalena (…). Finalmente, apareceu Jesus aos onze, quando estavam à mesa [eucaristia?], e censurou-lhes a incredulidade e dureza de coração [sermão?]. (Mc. 16.9,11)

Poderíamos falar ainda do caminho de Emaús, da Aparição para os 10, depois para os 11, tendo Tomé no meio deles, todas estas aparições realizadas no primeiro dia da semana, ou seja, no domingo, quando os cristãos reuniam-se para orações, partir o pão, ouvir a leitura das Escrituras e receber sua instrução. Além disso, se entendermos, com o Novo Testamento, que foi neste dia que o Espírito Santo desceu sobre os discípulos reunidos, inaugurando a Igreja, torna-se ainda mais claro tal fato, como bem comenta o Rev. Dr. H. O. Old:
Olhemos um pouco mais de perto para alguns exemplos de adoração do Dia do Senhor na igreja cristã primitiva. Foi no Dia de Pentecostes, o qüinquagésimo dia, o primeiro dia da semana depois de sete semanas, que o Espírito Santo desceu sobre a igreja e os primeiros crentes foram batizados. Tinha já depois de apenas umas poucas semanas se tornado costumeiro para todos os cristãos se reunirem na manhã do primeiro dia da semana? É muito importante notar que foi no Dia do Senhor que nosso Senhor derramou Seu Espírito Santo. O primeiro dia da semana não foi apenas o dia da ressurreição mas o dia do dom do Espírito também. (OLD, Hughes Oliphant - Worship That is Reformed According to Scripture, de Hughes Oliphant Old, ed. John Press Knox, Atlanta, 1984)

Assim, o Domingo, tornou-se o dia da reunião dos cristãos para orações, ouvir a Escrituras e sua explanação e o partir do pão. Documentos cristãos primitivos e do tempo imediatamente após o período neotestamentário afirmam e confirmam tal prática (Didaquê, Plínio, Justino Mártir, Constituições Apostólicas, Tertuliano, dentre muitos outros). Neste dia os cristãos reuniam-se para celebrar a nova criação de Deus em Cristo Ressuscitado. A vitória da vida sobre a morte. Reuniam-se neste dia porque Jesus assim o quis, ao reunir-se com eles ressuscitado no primeiro dia da semana. Celebravam a Páscoa de Jesus Cristo, a sua passagem da morte à vida e, com isso, a nova vida que receberam de Jesus.

Nota-se a centralidade da Páscoa no domingo, de sorte que cada domingo é evento pascal. Isso nos leva a entender também que a Páscoa anual, tornou-se, de igual modo, um domingo anual. Foi assim que o primeiro evento do Calendário Anual veio a ser o Dia da Páscoa do Senhor Jesus Cristo. A Páscoa, que era o centro do Calendário Anual no judaísmo, torna-se, também o centro do primeiro Calendário Anual da Igreja, seguindo a orientação paulina quando usa esta festa para fazer a sua cristologia: Lançai fora o velho fermento, para que sejais nova massa (…). Cristo, o nosso cordeiro pascal, foi imolado. Por isso celebramos esta festa. (I Co. 5.7-8). Como se pode notar o Dia da Páscoa era observado na primitiva Igreja.

(Continua)

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